Quem são os verdadeiros privilegiados?

Por Eric Gil Dantas

Por Eric Gil Dantas, economista do Ibeps e doutor em Ciência Política

No início desta semana a Secretaria Especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercados (SEDDM), do Ministério da Economia (ME), lançou um documento chamado de “Relatório de Benefícios das Empresas Estatais Federais”, que supostamente “informa o total de benefícios que cada estatal oferece aos funcionários, como abonos, adicionais, ausências autorizadas, auxílios e estabilidade, por exemplo. Além disso, traz informações relativas às maiores, menores e médias remunerações dos empregados e um detalhamento dos valores desembolsados com benefícios de assistência à saúde para cada trabalhador, por mês e ano”[1]. Obviamente sabemos que o real objetivo é muito menos sublime do que a equipe econômica de Guedes quer transpassar.

Como denuncia anonimamente um técnico do próprio ministério para o Correio Braziliense: “Para alguns técnicos do próprio governo, o relatório foi feito para “confundir a opinião pública”. Isso porque, no levantamento, os campos de cada estatal não são uniformes, “variam de acordo com o interesse”. Segundo um técnico do ministério, que não quis se identificar, “o relatório não tem consistência metodológica. E, no anúncio do governo, não existe nota técnica explicando os métodos de apuração ou qual o período de aplicabilidade dos benefícios”.

Visivelmente é mais um documento para tentar desmoralizar as estatais diante da população. Afinal de contas, mesmo com tantas tentativas, as pesquisas de opinião de vários institutos mostram a persistência da população em ser contra as privatizações. Para um Datafolha, em 2019, 67% da população era contra privatizações de um modo geral, sendo a Petrobrás a empresa em que a rejeição é maior. Já para uma pesquisa publicada no dia 1º deste mês, pelo Paraná Pesquisas, 50,3% é contra a privatização dos Correios, estatal que vem sendo alvo há anos de um plano de sucateamento e de campanhas negativas pesadas. Sabendo disto, o caminho continua a ser o de confundir a população e investir ainda mais em campanhas negativas contra o patrimônio nacional, a fim de entregar ativos tão lucrativos a amigos e clientes do ministro.

Neste texto não tratarei sobre cada estatal em si e o porquê cada dado – sem metodologia séria – apresentado pelo ME não se sustenta. Focarei na questão da Petrobrás em si.

Como os leitores já sabem, a Petrobrás é a joia da coroa do plano de privatizações do governo. Afinal de contas, a estatal é a maior empresa do país em valor de mercado (US$ 43,5 bi), a frente de grandes empresas como Vale (US$ 42,5 bi), Itaú (US$ 41 bi), Bradesco (US$ 31,3), Banco do Brasil (US$ 14,7 bi) e JBS (US$ 11,7 bi) – levando em consideração os cálculos da Global 2000: The World's Largest Public Companies, da Forbes.

Mas será que os trabalhadores da Petrobrás têm muitos privilégios e ganham mais do que deveriam? Em 2018, o químico industrial da Petrobrás, Marcelo Gauto, publicou em seu LinkedIn[2] um artigo muito interessante sobre o custo salarial que as principais petrolíferas que atuam no Brasil tiveram nos últimos anos. Vamos aqui atualizar os números de Gauto para 2019 e modificar a relação feita, mostrando o gasto anual por trabalhador, ao invés da proporção deste gasto em relação à receita operacional de cada empresa.

A metodologia utilizada é muito parecida com a de Gauto. Fui em cada relatório anual das cinco petrolíferas escolhidas no texto original, que são também as principais empresas do setor que atuam no Brasil, e pesquisei o gasto com salários e a quantidade de trabalhadores por ano. Foram considerados apenas o que as empresas contabilizaram como salários (salários, wages, salaries e employees costs). Isto é, podemos refinar ainda mais e comprar benefícios pagos entre as petroleiras, mas isto ficará para outro momento.

Tabela 01 – Valor gasto em salários (em US$), quantidade de trabalhadores e proporção salário anual por trabalhador – para o ano de 2019

Fonte: Relatório anual de cada empresa [Elaboração própria]

Como podemos ver, a Petrobrás na verdade tem um gasto médio com os trabalhadores petroleiros bem abaixo do restante, ou mais especificamente um gasto médio 35% menor do que a das outras três empresas. Além disto, todas as outras empresas oferecem benefícios parecidos com a Petrobrás. A Total (a mais próxima do nosso caso na tabela), além de ter gasto US$ 733 milhões em seguridade social para seus trabalhadores em 2019, despendeu US$ 948 milhões em pensões e outros tipos de benefícios previdenciários – além de ter mais pagamentos variáveis aos seus trabalhadores. Assim como a Equinor despendeu US$ 446 milhões em pensões.

O setor de petróleo e gás, em qualquer lugar do mundo, por ser uma atividade com uma rentabilidade muito superior à média da economia, paga salários melhores aos seus funcionários, e isto é bom porque aumenta a renda do trabalho em contraponto a renda do capital. Além disto, também é um setor – e no Brasil é um bom exemplo disto – com um sindicalismo bastante organizado, o que aumenta os custos de retirada de direitos por parte da empresa.

Mas sabemos que a preocupação do ME nada tem com as “desigualdades”. Guedes e cia. gostam do conto de fadas da meritocracia do setor privado, o local do reino da meritocracia e das “desigualdades justas”. O relatório cita que o intervalo de salários na Petrobrás é de R$ 1.510 a R$ 106.189, com uma média de R$18.930. Mas não diz que quem ganha salários absurdos é apenas a alta cúpula da Petrobrás, como o salário do senhor Roberto Castello Branco, que ultrapassa os 100 mil reais e que ainda adiciona uns “por fora” para atingir algumas centenas de milhares a mais. Ou seja, sequer oferece outras medidas que não sejam distorcidas por estes altos salários (como poderia ser uma mediana). Mas o curioso é que isto ainda é fichinha perto do setor privado.

Em um levantamento feito por um ex-diretor da Previ, Renato Chaves, com dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), é possível verificar como funciona o reino da meritocracia da iniciativa privada. Segundo os dados de empresas listadas na B3 (antiga Bovespa), CEOs (como chamam um presidente ou um executivo-chefe de uma empresa) destas companhias ganham valores absurdos. Nas Lojas Americanas, um CEO ganha 663 vezes a mais do que o salário médio de um dos seus funcionários. Já no Pão de Açúcar, este número é de 649 e na Magazine Luiza 526, como pode ser melhor visualizado no gráfico abaixo.

Gráfico 2 – Proporção dos salários de CEOs comparativamente a média do salário dos funcionários da mesma companhia (2019)

 

Fonte: Renato Chaves com base nos formulários de referências das empresas[3]

Isto acontece porque os salários desta alta cúpula das empresas privadas são verdadeiros absurdos. O CEO do Itaú recebe R$ 52,06 milhões por ano da empresa, o da B3 R$ 51,25 milhões e o do Santander R$ 45,32 milhões.

Quando falamos de empresas estatais isto não ocorre, e com certeza gera grandes frustrações para representantes do empresariado como o Castello Branco – ansioso por fazer o dever de casa com as privatizações para ser recompensado pelo mercado com um bom emprego e um salário a altura dos grandes executivos privados. Mas isto não é um problema, afinal de contas o que aumenta o “custo” no Brasil é salário de trabalhador, não de diretor milionário.

Isto lembra a discussão dos combates aos privilégios com a Reforma Trabalhista e Administrativa. Na Reforma Trabalhista o privilegiado era o trabalhador que tinha uma carteira assinada, o alvo de Henrique Meirelles. Já no segundo, tenta convencer que reduzir salário de professor de rede municipal, enfermeira de rede estadual ou de técnico-administrativo de universidade vai resolver os problemas, apesar de não tocarem nas castas realmente privilegiadas, como juízes e promotores, que apesar de serem delegados para manter a “Justiça”, são os primeiros a jogá-las no lixo com salários acima do teto constitucional.

Não vamos deixar que este relatório sirva para o mesquinho objetivo de meia dúzia de meninos da Faria Lima confundir a opinião pública. Continuaremos defendendo o valioso patrimônio brasileiro contra o avanço dos interesses privados!

[1] https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2021/fevereiro/ministerio-lanca-relatorio-inedito-de-beneficios-das-estatais-de-controle-direto-da-uniao

[2] https://www.linkedin.com/pulse/custo-de-salários-e-benefícios-comparação-bp-statoil-total-gauto

[3] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/09/30/no-brasil-ceo-de-empresa-de-capital-aberto-ganha-em-media-75-vezes-mais-que-funcionarios.ghtml