A autonomia do BC: captura e aprofundamento das desigualdades

Eric Gil Dantas, do Ibeps

Como uma primeira sinalização para o mercado financeiro, Arthur Lira (PP-AL) – novo presidente da Câmara – tomou para si a missão da imediata aprovação, sem nenhuma discussão, do projeto que dá autonomia ao Banco Central do Brasil (BCB). O projeto teve origem no Senado Federal, protocolado pelo senador tucano Plínio Valério (PSDB-AM), e foi aprovado naquela casa com o substitutivo do senador Telmário Mota (Pros-RR).

O projeto tem como ponto central a criação de mandatos fixos para a diretoria colegiada – composta por um presidente e oito diretores –, fazendo com que diretores nomeados por um presidente atuem também no mandato de um próximo presidente. Além disto, impede que o presidente da República demita os diretores e presidentes do BCB – salvo por problemas de desempenho ou legais. Um outro aspecto importante, e também controverso entre os defensores da autonomia do BC, é o mandato duplo, isto é, que a instituição não tenha apenas o objetivo de manter a inflação na meta, mas também tenha responsabilidade em relação ao produto da economia e ao emprego, tal como o Federal Reserve (banco central americano).

Neste texto tentarei vencer três objetivos: (i) explicar o porquê economistas liberais defendem a autonomia dos bancos centrais; (ii) mostrar como se dá a captura destas instituições pelo mercado; e (iii) falar sobre as suas consequências para o aprofundamento das desigualdades da renda. 

Por que dar autonomia para bancos centrais?
Os economistas defensores da autonomia dos bancos centrais partem de dois problemas teóricos: o da inconsistência temporal da política monetária e dos ciclos políticos eleitorais. O primeiro é a ideia de que no longo prazo, qualquer política monetária expansionista acabará em mais inflação, ou seja, qualquer forma de incentivar o crescimento econômico a partir de aumento de moeda prejudicará a economia. O segundo problema é o de que os políticos, principalmente em períodos eleitorais, optam por uma política monetária expansionista ao invés de uma política restritiva, o que a literatura chama de “ciclos políticos eleitorais”. A partir desta ideia, não seria responsável permitir que políticos influenciassem na determinação dos mecanismos de combate à inflação, normalmente atribuídos aos bancos centrais – no caso brasileiro, a taxa de juros –, pois eles sempre optariam por uma política expansionista, o que a curto prazo os beneficiaria no aumento de chances de reeleição.

Sendo assim, seria necessário retirar o banco central da alçada do Executivo, pois ele forçaria os banqueiros centrais a jogar mais dinheiro na economia, aumentando suas chances eleitorais, mas gerando inflação.

Nesta concepção, um banco central está em perigo por conta de uma possível influência do presidente, e nada mais. Mesmo tendo a função de regular o Sistema Financeiro Nacional (SFN), para estes economistas não há problema em relação à uma possível captura regulatória por parte das instituições financeiras.

A captura do banco central pelo mercado
Vários pesquisadores mais críticos à ideia da autonomia já mostraram a relação umbilical entre os mercados financeiros e os bancos centrais, regulados e reguladores. Aqui utilizarei alguns dados de minha tese de doutorado defendida em 2019 no PPGCP da UFPR a fim de ilustrar o problema. 

Naquele texto demonstro que, dentre os 89 diferentes indivíduos que ocuparam em algum momento diretorias do BCB entre os governos de José Sarney e de Dilma Rousseff, 51,7% deles tiveram origem externa ao próprio Estado, sendo eles vindos ou de instituições financeiras ou de instituições de ensino – 30 do mercado e 16 de universidades (sendo 10 deles da PUC-Rio, principal centro da ortodoxia econômica brasileira). Mas quando tratamos das diretorias de política econômica especificamente – principais responsáveis pela linha da política monetária da instituição – 76% destes diretores vieram de fora do próprio Estado. 

Em um segundo aspecto, também vemos que o alinhamento ideológico se dá não apenas pela sua origem – como diretores recrutados diretamente do mercado financeiro –, mas também pela sua formação acadêmica. Do total de diretores deste mesmo período, 52% se formaram em instituições de ensino do mainstream econômico, onde se ensina a fina flor do liberalismo – em instituições como a FGV-RJ, Berkeley, Princeton, MIT e Harvard. 

Esta formação no mainstream econômico é totalmente hegemônica no BCB. Se você sentar em um banco da Unicamp (universidade reconhecidamente opositora à esta visão), por exemplo, suas chances estatísticas de chegar ao comando de um banco central são praticamente nulas. Diferentemente de outros órgãos públicos, como os finados Ministério da Fazenda, do Planejamento, da Indústria, ou entidades como o BNDES, no banco central nem em governos petistas entram economistas com uma visão diferente do mainstream, o que prova o total esvaziamento de debates de ideias existente neste órgão.

Por fim, também temos a questão da porta-giratória. O professor de Ciência Política da University of Washington, Chris Adolph, cunhou o termo Shadow Principals (um tipo de “chefe nas sombras”) para falar dos efeitos da porta-giratória em bancos centrais de países ricos. Segundo Adolph, diretores e presidentes de bancos centrais sempre atuam pensando em suas carreiras futuras, pois eles sairão do banco central (onde passarão apenas um ou dois anos) e continuarão as suas carreiras, provavelmente em grandes bancos ou abrindo suas consultorias (que serão contratadas por grandes bancos). Se existe sempre um futuro chefe te avaliando às sombras, é difícil que um diretor ou presidente de banco central queira ir de encontro aos interesses deste setor.

Novamente citando dados de minha tese, 67% dos diretores do BCB de 1985 a 2016 saíram pela porta-giratória, conseguindo empregos no setor que antes regulava. Sendo este número de 84% para aqueles diretores que ocuparam diretorias de política econômica do BCB.

Como disse o cientista político marxista Ralph Miliband em O Estado na Sociedade Capitalista, “o capitalismo contemporâneo não dispõe de servidores mais devotados e mais úteis do que os homens que ajudam a administrar a intervenção do Estado na vida econômica” (p. 159).

A autonomia do banco central como geradora de desigualdades
Em artigo publicado em janeiro deste ano no Policy Research Working Paper do Banco Mundial e intitulado “Does Central Bank Independence Increase Inequality?” (“Independência do Banco Central Aumenta a Desigualdade?”, em português), três pesquisadores chegaram à conclusão de que incrementos na independência de bancos centrais geravam aumentos na desigualdade de renda. Ou nas palavras dos próprios autores, em tradução livre:

Empiricamente, testamos essas hipóteses usando um conjunto de dados de painel cobrindo até 121 países de 1980 a 2013 […]. Encontramos evidências que apoiam nossa conjectura principal – que a Independência do Banco Central aumenta a desigualdade. Um aumento da independência […] [leva a um] declínio na parcela da renda de todos os grupos de renda até o sexto decil [considerando aqui a população distribuída em dez diferentes partes por nível de renda]. A parcela da renda obtida no decil inferior diminui 0,3 pontos percentuais. A independência do BC, por outro lado, tem um efeito positivo considerável sobre a participação na renda dos 80%, 90% e da decilidade superior [dos mais ricos]. Este último viu sua participação na receita aumentar em mais de 1 ponto percentual. A independência do BC, em outras palavras, transferiu a renda da metade inferior da população para os que ganhavam mais. (p. 3)

O argumento dos autores é que isto se dá através de três mecanismos: (i) a independência do banco central restringe indiretamente a política fiscal e enfraquece a capacidade do governo de se envolver em uma política de redistribuição; (ii) incentiva os governos a desregular os mercados financeiros, o que gera uma explosão na valorização dos ativos, ativos estes que estão predominantemente nas mãos de segmentos mais ricos da população; e (iii) para conter as pressões inflacionárias, os governos promovem ativamente políticas que enfraquecem o poder de barganha dos trabalhadores. Estes mecanismos são típicos de banqueiros centrais conservadores, que é o perfil que verificamos para o caso do BCB e citamos no item anterior.

Não por acaso o texto foi publicado em janeiro de 2021. O pressuposto de que o capitalismo diminui desigualdades sociais vem perdendo força mesmo em instituições como o FMI e o Banco Mundial, e o tema de redistribuição de renda ganha relevância, inclusive a partir de instituições como os bancos centrais. Além disto, vivemos uma grande crise econômica eclodida com a pandemia e uma precarização do trabalho sem precedentes na história recente – e com isto cada vez mais possibilidades de instabilidade social. Os bancos centrais tiveram papel ativo em todo o mundo para tentar ressuscitar a economia, o que põe em xeque o comportamento que o mercado quer para o banco central brasileiro.

O PL 19/2019 e a ditadura da Faria Lima
Como vimos, a autonomia do BC não é nem de perto algo positivo para a economia real, a economia que faz chegar comida na casa dos trabalhadores. Muito pelo contrário, gera ainda mais desigualdades em um país já sufocado por abismos sociais. Além disto, a autonomia não gera menos inflação, não gera juros menores e muito menos mais emprego e renda. É apenas uma terceirização para o mercado financeiro de uma instituição que, em tese, compõe o Estado brasileiro e que deveria estar dentro das regras políticas e democráticas de qualquer outra instituição.

Sabemos que o governo Bolsonaro é totalmente submisso à Faria Lima, e que sua sobrevivência depende dela. Esta votação e provável aprovação por seu aliado a toque de caixa é apenas para dar um “sinal” aos donos do dinheiro, mostrando que não medirão esforços para cumprir toda a agenda que eles exigem. 

Enquanto isto, o preço dos combustíveis, do gás de cozinha e o fim do auxílio emergencial, os verdadeiros problemas econômicos da população, seguem sendo ignorados pelo presidente. Infelizmente não apenas por incompetência.

Eric Gil Dantas, economista do Ibeps (Instituto Brasileiro de Estudos Políticos e Sociais) e doutor em Ciência Política

Fonte: Sindipetro-SJC