O que foi a Petrobrás sob o governo Bolsonaro?

Por Eric Gil Dantas - Economista do Ibeps

Finalmente chegamos ao último mês do lento e abjeto governo Bolsonaro. A Petrobrás sobreviveu ao seu maior teste de resistência desde as ondas de privatizações da década de 1990. Sobreviveu com algumas sequelas, é verdade, mas sobreviveu, e é o que importa. 

E já que chegamos ao fim deste governo, e ainda sob uma democracia, o que facilita a escrita deste texto, é importante fazermos uma análise retrospectiva. O que foi que aconteceu ao longo destes últimos quatro anos? Que Petrobras está sendo legada ao novo governo Lula?

Para isto, dividiremos nossa retrospectiva em quatro diferentes campos: (i) os preços dos combustíveis, (ii) os investimentos da companhia; (iii) as privatizações de ativos; e (iv) os lucros e dividendos.

PPI, preços recordes e desonerações
Desde a implementação do Preço de Paridade de Importação (PPI), no final de 2016, a Petrobrás foi responsável por aumentos substanciais nos preços dos combustíveis em dois momentos: em 2018 (greve dos caminhoneiros) e em 2021-2022. Em maio de 2018 o preço do diesel S-10 chegou ao seu maior patamar real da história, já a gasolina atingiu esse mesmo recorde no mês de outubro daquele ano. Acontecia o mesmo com o GLP, que chegou ao preço recorde já no mês de janeiro de 2018. No entanto, os recordes de 2018 foram fichinha para os preços que pagamos em 2021 e 2022. O preço final da gasolina chegou a R$ 7,19 (todos os valores citados aqui são atualizados para outubro de 2022) no mês de junho de 2022. O diesel S-10 a R$ 7,57, em julho. E o GLP a R$ 113,96, em abril de 2022.

As consequências destes preços elevados foram diversas. A mais gritante foi fazer com que os índices de inflação chegassem aos dois dígitos, fenômeno pouco visto no século XXI. Entre setembro de 2021 e julho de 2022 os índices do IPCA encerrados em 12 meses ficaram em dois dígitos, em abril chegando a 12,13%, sempre com alimentos e combustíveis sendo os maiores responsáveis. 

No caso do GLP, especificamente, o efeito foi ainda mais terrível. O país está consumindo cada vez menos botijões de gás. No ano passado o consumo de GLP até 13kg (13kg é o botijão padrão, consumido nas residências) já havia caído 4,18%. Em 2022, até julho o consumo deste combustível já caiu mais 5,5%. Isto ocorre mesmo com o programa Gás para os Brasileiros e o programa de distribuição de gás de cozinha da Petrobras, o que mostra o tamanho do problema. O consumo de GLP está sendo substituído pelo de lenha. Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética, o consumo de lenha nas residências subiu 3,2% em 2021, chegando ao maior patamar desde 2010.

A resposta por parte do governo Bolsonaro foi meramente eleitoreira. Como estava em desvantagem nas pesquisas eleitorais e a questão dos combustíveis era um forte componente de desgaste diante da opinião pública, Bolsonaro impôs aos estados uma diminuição das alíquotas de ICMS, limitando-a aos 18%. O efeito foi sentido basicamente na gasolina, já que no diesel as alíquotas deste imposto raramente chegavam aos 18%. Foi uma festa com chapéu alheio, pois o ICMS é fonte de receitas de estados e municípios. Houve uma redução no preço da gasolina (naquele momento os preços internacionais também caíram, o que permitiu a Petrobras cortar o preço nas refinarias), mas a conta está sendo paga até agora. A arrecadação de ICMS nos estados brasileiros entre agosto e outubro (último dado consolidado) já caiu 4,43%, ou R$ 8 bilhões a menos nos três primeiros meses de funcionamento da nova isenção (que também abarca energia elétrica e telecomunicações). Em resposta a isto, vários estados já estão aumentando o ICMS de outros produtos para compensar a perda de arrecadação. O próprio Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e Distrito Federal (Comsefaz) orientou aos governos estaduais para elevar a alíquota padrão como caminho para recompor arrecadação de ICMS. No fim das contas, o imposto saiu da gasolina e vai para outros produtos. 
Investimentos pífios

A gestão Bolsonaro deu continuidade aos baixos investimentos da estatal. Mesmo com receitas recordes nestes últimos anos, devido ao Real depreciado e preços recordes do barril de petróleo e dos produtos derivados, a empresa ignorou novos investimentos, preferindo esvair tudo em dividendos (como trataremos mais a frente). O que não faltam são gargalos que deveriam ser resolvidos com volumosos investimentos. Um primeiro é o déficit no consumo de derivados. Hoje importamos quase 20% dos combustíveis consumidos no Brasil. É urgente o investimento em novas refinarias e em unidades de processamento de gás natural, para aumentar a produção principalmente de diesel e GLP. Também faltam investimentos para transportar o gás natural do Pré-sal para a costa, com novos gasodutos. Faltam investimentos em fertilizantes nitrogenados, setor que a Petrobras praticamente abandonou, e que a guerra na Ucrânia mostrou ser estratégico para o país. E, por fim, em fontes para a transição energética, como os biocombustíveis, solar e eólicas. No que investir não falta.

Gráfico 1 – Investimento Total anual da Petrobras (em valores de dezembro de 2021) - Em bilhões de R$

Fonte: Petrobras; IBGE

Sob Bolsonaro, em 2020, a Petrobras atingiu o menor nível de investimento desde o ano de 2002, mesmo sendo uma empresa muito maior hoje do que no início do século. Do auge dos investimentos em 2013 até o ano passado, o investimento da companhia caiu 72%. Mas para sermos justos, o Bolsonaro não diminuiu ainda mais o pífio investimento da companhia, apenas manteve no ridículo patamar o qual herdou.

Recorde de privatizações
Bolsonaro foi de longe o presidente que mais privatizou a Petrobras desde o início do processo de “desinvestimentos”, em 2015. O Privatômetro do Observatório Social do Petróleo contabiliza que até outubro de 2022 foram vendidos R$ 275,5 bilhões em ativos da petroleira, sendo que R$ 173 bilhões destes sob o governo Bolsonaro. Foram privatizações como a da TAG, ações da Petrobras de posse do BNDES, BR Distribuidora, Campo de Albacora Leste, RLAM, Polo Potiguar, Campo de Carmópolis, Liquigás, REMAN e SIX.

Gráfico 2 – Venda de ativos da Petrobras (por presidente em %) – o total absoluto das vendas é de R$ 275,5 bilhões (em valores atualizados de junho de 2022)

Fonte: Privatômetro/Observatório Social do Petróleo. Atualização do 3º trimestre de 2022

Importante pontuar que estes valores viram lucro líquido, e consequentemente compõem parte destes volumosos dividendos que estão sendo pagos. No ano passado, quase um quarto do lucro da companhia veio de privatizações. Ou seja, a privatização da maior empresa do país está servindo para aumentar a renda de curtíssimo prazo dos acionistas da companhia, sem nenhuma visão de médio ou longo prazo para a empresa. 
Outra consequência é o aumento dos preços por parte das novas empresas privadas. A Refinaria Mataripe é o melhor exemplo disto. Sob gestão privada desde dezembro de 2021, passou a cobrar preços acima da média da Petrobras. A RLAM, antes de ser privatizada, cobrava pela gasolina sempre 2 centavos abaixo da média das outras refinarias da estatal. Após a privatização, ao longo de 2022, cobrou em média 24 centavos a mais do que a Petrobras.

Lucros e dividendos
A Petrobras teve lucros extraordinários de 2021 para cá. Em 2021 o lucro líquido foi de R$ 106,7 bilhões, e dos primeiros três trimestres de 2022 o lucro já é de R$ 145 bilhões. Mas a explicação para os lucros recordes nada tem a ver com qualquer revolução de gestão instaurada no ano passado. A explicação principal são os preços: tanto o brent quanto o preço dos derivados vendidos pela companhia chegaram a patamares nunca vistos. 
Como podemos enxergar no gráfico 3, o barril de petróleo chegou ao seu maior valor em reais no 2º trimestre deste ano, a R$ 560. Entre 2016 e 2020, o preço médio do brent ficou em R$ 210 por barril, equivalente a 38% do preço recorde do 2º trimestre. Isto é explicado tanto pelo aumento do preço no mercado internacional quanto a enorme desvalorização cambial do Real, processo de deterioração do câmbio iniciado desde que Paulo Guedes assumiu o Ministério da Economia.

Gráfico 3 – Preço médio trimestral do brent (R$/bbl)

Fonte: Petrobrás
 

Outro grande aumento ocorreu nos preços de derivados básicos vendidos pela Petrobras. No 3º trimestre os derivados básicos vendidos pela Petrobras no mercado interno chegaram ao recorde de R$ 693 por barril. A venda de produtos derivados no mercado brasileiro é responsável por 65% da receita líquida da Petrobras, sendo assim, este preço recorde elevou substancialmente as receitas, e consequentemente o lucro, da estatal.
 

Gráfico 4 – Preço derivados básicos vendidos pela Petrobras no mercado interno (R$/bbl)


Fonte: Petrobrás
Com lucros exorbitantes resultantes principalmente dos preços recordes e abusivos à população, a gestão da Petrobras optou por escoar tudo isto por meio de dividendos, para remunerar o máximo possível os detentores das ações da companhia. Entre 2021 e 2022 a Petrobras irá pagar ao todo R$ 289,8 bilhões em dividendos. Segundo o Índice Global de Dividendos da gestora Janus Henderson, a Petrobras deve fechar o ano de 2022 como a segunda maior pagadora de dividendos em todo o planeta. 

São receitas totalmente desperdiçadas, transformando privatizações e preços abusivos em renda para os grandes detentores de ações da companhia. Como já vimos, as receitas não viram novos investimentos como em uma empresa “normal”, é puro rentismo – ou melhor, um verdadeiro saque à estatal. A economia, obviamente, sofre muito com isto. A Petrobras chegou a investir o equivalente a 11,1% de toda a Formação Bruta de Capital Fixo da economia brasileira, em 2009. Hoje este número está próximo dos 4%, mesmo com receitas muito superiores às da época.

Em síntese
A Petrobrás sob o governo Bolsonaro aprofundou a política já herdada anteriormente. Privatizou como nunca, cobrou os preços mais altos da história e investiu o menor volume possível, tudo isto para sobrar o máximo de dinheiro para os acionistas. A economia sofreu, com perpetuação de baixíssimos investimentos produtos e inflação alta, gerando desemprego, diminuição da renda e fome. 

A Petrobrás deverá ser um dos principais vetores do desenvolvimento do novo governo Lula. É verdade que o Brasil perdeu uma oportunidade ímpar com o novo ciclo de commodities que perpassou a maior parte do governo Bolsonaro, infelizmente os altos preços internacionais ao invés de impulsionar a economia brasileira, gerou apenas mazelas para o seu povo. 

Os desafios da Petrobrás como uma empresa compromissada com seus verdadeiros proprietários, o povo brasileiro, são muitos, mas os mais urgentes são com certeza a retomada dos investimentos, a cobrança de preços justos nos combustíveis e a transição energética. 
Esperamos que 2023 seja um ano de uma verdadeira inflexão na política da Petrobras, e que nunca mais tenhamos um inimigo declarado da Petrobras comandando o país.